12/24/2006

Contraste natalino

Você já me viu antes, apesar de me ignorar por completo, você sabia que eu estava ali... Parado, inerte a tudo o que possa parecer...
Fingiu não ver, mas percebi um prazer, uma pontinha de humanidade: um misto de alívio e satisfação por você não estar na minha pele, por você não ser eu...
Você também não se sentiu moralmente limpo. Vi-o entrando no templo e doando alguma mixaria. Limpando a sua alma, perante o Senhor? Manter as aparências. Viver numa sociedade é isso, não é?
Você frequenta o supermercado, se alimenta e à sua família. Homem digno e respeitado. Uma semana depois eu cato suas míseras sobras no aterro. Meu supermercado, disputo com animais mais decentes: vermes e urubus... Afinal, o ser humano é o ser mais desumano.
Assim vou levando, até quando der? Até quando Deus quiser, meu caro. Você tem a vida pela frente. Eu? Eu já cruzei o começo do fim da minha vida.
Sem esperança, sem sonhos, sem oportunidades. Raramente me tratam com alguma dignidade, com respeito. Não me querem por perto, e eu compreendo.
Minha aparência é desprezível, as minhas roupas, assim como o meu cabelo, fedem o odor das ruas e da noite.
Nada comparado ao Carolina Herrera de sua esposa... As roupas que eu visto já foram de seus filhos, ou estampam seu rosto na frente.
"Parece que chorei... Sinto na face uma perdida lágrima rolando... Sonhei de noite as belas visões palpáveis de acordado."
Amanhã é Natal, o senhor aguarda um belo e farto banquete junto à sua família. No dia seguinte, eu espero as suas migalhas. Se eu morrer, talvez de frio, quem sentirá falta?
"Quando em meu peito rebentar-se a fibra, que o espírito enlaça à dor vivente, não derramem por mim nem uma lagrima em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura a flor do vale que adormece ao vento: não quero que uma nota de alegria se cale por meu triste passamento."
Nem isso acontecerá, e deixo a vida como deixa o deserto o poente caminheiro.
"Muito prazer, meu nome é Otário, vindo de outros tempos, mas sempre no horário. Peixe fora d'água, borboleta no aquário."

Um comentário:

mel disse...

é... este mundo é estranho. talvez se cada um fizesse algo, essa historinha seria uma ficção! :(